Não façam suas apostas

Cresce o número de jovens que usam sites de apostas e especialistas alertam que os riscos de dependência são reais
10 de outubro de 2023 em Edições Impressas, Nacional
Ilustração gerada por IA

Miguel*, de 15 anos, começou a jogar on-line com a permissão dos pais, mas logo passou para as apostas esportivas. Os pais não proibiam, porque achavam que o filho estava em um game comum. Só descobriram a compulsão de Miguel depois de ele ter feito um empréstimo de 30 mil reais em uma financeira com o cartão de crédito da família. Ao investigar mais a fundo, os pais descobriram que ele estava apostando em jogos de corrida de cachorros galgos no interior da Inglaterra.

Alex*, de 14 anos, filho de família com boas condições financeiras, começou a apostar com o dinheiro que recebia de presente dos tios e avós. Os pais se deram conta do vício porque ele começou a pedir valores maiores e os parentes passaram a negar. Para conseguir o dinheiro, ele começou a vender os próprios pertences.

(*) Os nomes são fictícios.

Estes são apenas dois exemplos de adolescentes que desenvolveram ludomania, a compulsão por jogos de aposta. Mas esse número vem aumentando. Especializada no atendimento de pessoas com dependência, a psiquiatra Carla Bicca tem visto o perfil dos pacientes mudar. “Não trabalho com crianças e adolescentes, mas, nos últimos tempos, tenho recebido pacientes entre 13 e 14 anos que já têm sinais de adição [dependência]”, diz a médica, que é coordenadora da Comissão da Psiquiatria das Adicções, da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).

Essa queda na idade dos pacientes preocupa. A ludomania é reconhecida pela Organização Mundial da Saúde como um transtorno relacionado aos impulsos e pertence à categoria de dependência comportamental. Está frequentemente associada a diversas manifestações de problemas sociais e de saúde, como depressão, suicídio, conflitos familiares, desordem financeira, perturbações profissionais e educacionais.

Segundo Carla, a Copa do Mundo do Catar deu forte impulso aos sites de apostas esportivas. Os números comprovam: o Brasil foi o país que gerou o maior volume de visitas em 2022, segundo levantamento da Similarweb — o aumento nos acessos foi de 75%. O início de 2023 mostrou que o país foi o que mais subiu em visitas, atingindo o volume de 3,78 bilhões de acessos acumulados desde janeiro de 2022.

Por que os jovens jogam

Uma pesquisa feita pelo Fundo das Nações Unidas Para a Infância (Unicef), em 2021, com mil adolescentes entre 14 e 17 anos na Geórgia (Estados Unidos), mostrou que 61% dos entrevistados conheciam pelo menos uma pessoa que jogava; 30% tinham interesse na prática; e 13% jogavam com frequência. O estudo mostrou ainda que os adolescentes raramente começam a apostar sozinhos. Cerca de 51% deles são levados a jogar por estímulo de amigos.

A informação também é escassa. Entre os entrevistados, 80% disseram que não haviam recebido informação sobre o risco de dependência e 90% não queriam saber mais a respeito. “Só vamos nos dar conta de que realmente é um problema quando os números já estiverem muito altos”, lamenta Luiza Dalmazo, influencer que oferece orientação financeira a crianças e adolescentes.

Jovens mais suscetíveis

A pouca idade é um agravante para o desenvolvimento da dependência. “Quanto menor a idade, maior a suscetibilidade, porque o cérebro ainda não está totalmente formado”, diz o psicólogo Maurício Cotrim. Ele completa que o cérebro fica pronto a partir dos 21 anos — antes disso, o ser humano tem mais vulnerabilidade para qualquer tipo de adição.

Jovens com histórico de dependência na família têm mais risco de enfrentar esse problema. Somando esses fatores à exposição continuada e sem bloqueio, o quadro fica mais preocupante. “Mesmo que a criança não tenha um gene para a adição, se ela tiver muita exposição, pode se tornar uma dependente também”, diz Carla. O fato de as apostas serem feitas por aplicativos no celular atrapalha o controle da família e até o processo de cura. Como o aparelho é onipresente no dia a dia dos jovens, fica difícil garantir que eles não terão acesso a esses jogos.

A impulsividade característica dessa faixa etária também aumenta os riscos. “O jovem tem dificuldade de identificar prejuízos. Ainda que veja outros se dando mal, acha que com ele vai ser diferente. Ele pensa que não corre o risco de se viciar”, afirma Cotrim.

Não dá para ganhar

Quando ganham uma aposta, algumas pessoas ativam a área cerebral da gratificação e vão querer repetir a dose, até se tornar dependentes. O usuário ganha nas primeiras, empolga-se, joga de novo, e aí vem a chamada fase da perda. À procura da sensação de recompensa, ele joga de novo, de novo e de novo, buscando ganhar. No entanto, o final nunca é feliz. “Os aplicativos de aposta são como cassinos: quem ganha sempre é a banca”, diz Carla.

Propaganda intensa

Outro complicador na febre das bets (bet é o termo em inglês para apostas) é a publicidade. Basta acompanhar o mundo esportivo para constatar que as propagandas desses serviços estão do comercial de TV às placas em volta dos gramados de futebol. Também é comum ver a marca de casas de apostas estampada na camisa dos principais clubes.

Para atrair ainda mais, quem faz os anúncios são os próprios atletas, muitas vezes ídolos das crianças e adolescentes. Craques como Vinicius Jr. e o jogador de futsal Falcão estão entre eles. As propagandas falam sempre dos ganhos e benefícios dessa atividade, mas deixam de lado os riscos e prejuízos causados.

Não é difícil encontrar até famosos que já perderam dinheiro apostando. Um dos exemplos mais destacados é do rapper Drake. Levando em conta somente o que ele já divulgou nas redes sociais, suas perdas, contabilizadas pelo portal UOL, já chegaram a 18,79 milhões de reais.

Os riscos dessa alta exposição começam a ser considerados. Lá fora, a Premier League, da Inglaterra, decidiu proibir o patrocínio de casas de apostas na frente das camisas a partir do início da temporada 2026/27. As marcas poderão aparecer em outras partes dos uniformes, como nas mangas.

Fique atento aos riscos

Para ajudar os jovens a identificar se estão correndo risco de dependência em jogos de aposta, a psiquiatra Carla Bicca criou um questionário bem simples de responder. “É um guia que leva as pessoas a pensar; ele não vai concluir nada, mas vai dar início a um processo de pensamento”, diz a médica.

MP DAS BETS
Os jogos considerados de azar foram proibidos no Brasil em 1946, mas, a partir de 2018, uma Medida Provisória (MP) legalizou as bets, estabelecendo um prazo de quatro anos para que essa atividade fosse regulamentada. O prazo venceu em dezembro de 2022.
 
As empresas que atuam hoje no Brasil têm sede fora do país, mas isso não impede que ganhem muito dinheiro. Há estimativas de que o valor movimentado por essas empresas chegue a 12 bilhões de reais.
 
Em julho deste ano, o governo publicou uma nova MP que regulamenta e taxa as apostas. Ela proíbe que menores de 18 anos usem os sites e também determina a cobrança de imposto de renda de 30% dos apostadores que receberem prêmios acima de 2.112 reais. As medidas ainda precisam ser analisadas pelo Congresso Nacional.
 
“Há muita discussão visando a parte financeira e o recolhimento de impostos, mas não se vê preocupação com a saúde ou campanhas de informação para apostadores e suas famílias”, diz a psiquiatra Carla Bicca.

 Menina com celular. Foto criada por diana.grytsku - br.freepik.com

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